XAMANISMO É COISA DE BRANCO???
Sim, com certeza, e não!
Todos estão cansados de saber que o xamanismo é um termo genérico, que e remete a uma multiplicidade de manifestações, em sua maioria bem diferentes, e em alguns casos contraditórias. Termos generalistas não dão conta da realidade, são apenas conceitos. Há quem se apegue a conceitos, e tenta reproduzir isso na vida; certamente irá sofrer muito, pois os conceitos, como o nome mesmo diz são cortes da percepção, termos (terminar), e não a coisa em si.
O xamanismo, como termo da antropologia, quer dizer ao pesquisador que há uma área do conhecimento que estuda as práticas espirituais dos povos indígenas (outro termo genérico). E assim como todas as áreas de estudo, tem seus limites. Bons cientistas, portanto, precisam reconhecer os limites de apreensão da realidade através de termos generalistas.
Porém temos outra questão que é bem viva, a cultura. A cultura cresce e se pluraliza, se multiplica sempre de forma híbrida das periferias para o centro das instituições como propõe YURI LOTMAN. A cultura molda os termos, e se apropria deles. O mesmo ocorre com o uso do termo xamanismo, hoje muito usado. Até bem pouco tempo atrás se usava o termo xamanismo de forma pejorativa, porém, com o avanço do Movimento de Contra Cultura (décadas de 1960 e 1970) e o avanço do Movimento New Age tem aberto o interesse por práticas autóctones. Estas práticas têm se tornado muito comuns, e deságuam nas práticas de saúde integrativa, mas também de forma amalgamada tem se sincretizado com o esoterismo, com a cultura popular, com as religiões de incorporação, espiritismo etc.
O xamanismo não está fora deste movimento, com a presença de diversos antropólogos. Com o avanço da chamada antropologia interpretativa de GEERTZ, muitos antropólogos e estudiosos das práticas indígenas se colocaram a viver com estes os povos nativos, e alguns aprenderam suas práticas espirituais, tais como os conhecidos autores: CASTAÑEDA e HARNER. Criaram escolas de pensamento, cada uma a sua maneira, e popularizaram estas práticas de transe induzido, como mecanismo de tratamento de saúde na cultura ocidental.
Temos, no entanto, que toda tentativa de tradução lida com algum grau de perda de significado. Existem modos de ser próprios dos nativos, que não podem ser traduzidos mesmo que tenha a máxima a similaridade. Esta perda considerável do que seja a espiritualidade nativa e seu modo de ser no mundo muitas vezes é irreversível.
Sobre estes aspectos, podemos tentar corrigir alguns detalhes mais gritantes, pois ultimamente, com a popularidade das práticas de transe xamanísticas, e com a grande procura por espaços holísticos e xamânicos em meio urbano vêm ao longo dos últimos vinte anos recebendo, de forma progressiva, a presença de nativos conduzindo trabalhos e este movimento chamamos de Neoxamanismo Urbano, (que se diferencia do Neoxamanismo indígena, e existe xamanismo no meio urbano – comunidades indígenas que vivem nas metrópoles).
Bom, é certo que movimentos religiosos sempre têm uma relação com os meios de produção, neste caso o capitalismo. Tudo depende de dinheiro para que possamos realizar algo, este é o modo de vida que temos hoje. Assim como o homem branco, o indígena também precisa do comércio. Venda de artesanato e a prestação de serviços ritualísticos, que na maior parte das religiões são pagos, como por exemplo as vendas de ex-votos nas igrejas católicas, ou os serviços de ordem espiritual nas terreiros de candomblé. É claro que isto não inviabiliza as trocas simbólicas, em muitos casos o valor financeiro não supera as relações qualitativas dos encontros.
Obviamente que todo tipo de relação comercial, simbólica ou não, que se estabelece, como o consumo em nossa sociedade, se estrutura como produto. Os bens de consumo sempre obedecem alguma norma de consumo, Sempre há algum modo de consumo e produção de bens materiais simbólicos.
O neoxamanismo urbano não está isento de todo este contexto. Existem contas para serem pagas, aluguel, luz, água, gás, além do consumo de produtos como ervas, banhos, sprays, óleos etc. Neste processo já podemos perceber a distância do neoxamanismo urbano dos xamanismos praticados nas comunidades originárias. Os modos de produção são bem diferentes do nosso e sem moeda, as trocas materiais eram feitas via escambo.
Isso é muito complexo, pois como dissemos existe uma rede de trocas simbólicas em que os próprios nativos, bem ou mal, estão envolvidos, e incentivam. Os núcleos, rodas e grupos de neoxamanismo urbano têm muitos hibridismos, construindo sua identidade como uma prática religiosa que está para os xamanismos indígenas como a Igreja Universal do Reino de Deus está para o protestantismo europeu de séculos atrás. São, portanto, novos movimentos religiosos, e não um braço dos xamanismos indígenas, ainda que continue usando o vocativo “xamanismo” em seu nome, e que mantenha certa rede de leitura simbólica com os povos autóctones.
O que esperar desta leitura do movimento neoxamânico?
Acreditamos que possa haver uma autonomia, e que os velhos preconceitos sobre isso ser “coisa de índio” sejam superados. Primeiramente pelo fato de que “coisa de índio” já é uma preconcepção errada, Há que se estudar cada cultura eetnia em seu modo de ser e não esperar que uma releitura urbana atual, com todo sincretismo, seja uma reprodução ipsis litteris do modo de ser indígena. Resgate e valorização sim, mas sem ilusões!
Caímos, por fim, em uma questão ética.
Neste caminho, a resolução se dá pela ética. Em saber que está usando o nome de outrem em seu benefício. Pois ao fazer o vocativo ao termo xamanismo, estes grupos estão de alguma forma se filiando ao mundo indígena. E diante desta filiação, mesmo que seja de um “parente distante”, o DNA continua por ai. E como seres éticos dever conta à história destes povos que viveram antes de nós, ancestralidade, e que mantem a “cultura xamânica” viva, é uma obrigação moral.
Neste sentido, sempre procurar se aproximar de forma ética desta cultura é fundamental para que o neoxamanismo urbano consiga estruturar raízes sólidas, e que estes grupos possam trabalhar em equanimidade com a história, entendendo que o homem ocidental ainda costuma deturpar e usurpar as culturas alheias para seu proveito próprio. Os usos e abusos da memória tradicional dos povos originários devem ser bem percebidos e discutidos, assim como exigida a máxima ética junto às fontes de estudo. o que hoje, percebemos como fundamento das novas espiritualidades é a modo ético e suas relações com suas origens, do mesmo modo que as matrizes africanas têm com a terra mater, nós também, como espiritualidade de matrizes indígenas; Devemos, pois, conta aos povos originários e temos uma dívida histórica com estas comunidades e com a manutenção do seu modo de vida.
William Nuvem Branca é educador, terapeuta integrativo, existencial e pesquisador do neoxamanismo urbano, tem Doutorado em Ciências da Religião e Especialização em Psicopatologia Fenomenológica. É Diretor do Instituto Inatekié.