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Linguagem e terapia - leituras filosóficas

 

Introdução

Ludwig Wittgenstein é um pensador bem adverso, tem uma obra que é considerada fundamental. É um autor de grande versatilidade e que pôde transformar a filosofia por duas vezes, a ponto de ser adjetivado como primeiro e segundo Wittgenstein, ou o autor do Tractatus e o autor das Investigações. Isto também mostra como sua filosofia modificou-se e isso pode até ser considerado como uma mudança realmente substancial.

Wittgenstein no seu primeiro trabalho, o enigmático Tractatus Lógico-philosophicus, busca por uma questão: o que de todo exprimível, é exprimível de forma clara o que não se pode falar deve-se calar.[1]     

O que há de significativo para esta pequena introdução é saber que no Tractatus, Wittgenstein entende que o mundo é um estado de coisas, e que a linguagem se apresenta como o enlaçamento da figuração à realidade.[2] Esta filiação entre a linguagem e o mundo é que determina as coisas, e também que o limite do mundo é o limite da linguagem. [3] O nome se vincula a realidade e isso prova que o saber sobre o mundo pode ser tratado como uma proposição lógica, e ai encontrarmos a verdade ou a falsidade dos fatos. O que está presente no primeiro Wittgenstein é sua filiação ao pensamento logicísta.

Neste primeiro momento então o autor o Tractatus esta nos dizendo que, o que não podemos pensar, não pode ser dito. O trabalho da filosofia seria “o de nada dizer, senão o que se pode dizer” (Wittgenstein, p. 281, 2008.), isso afastaria a metafísica e possibilitaria uma ciência mais exata e rigorosa. O que Wittgenstein então coloca, e pede para depois de usada jogar fora a escada, é para olharmos o mundo de tal forma que a linguagem se identifica com ele.

Pois bem essa noção de identidade entre linguagem e mundo vai ser deixada de lado pelo segundo Wittgenstein. Nas Investigações Filosóficas, o autor esta bem diferente do primeiro, e agora admite que a linguagem é senão um jogo estabelecido entre os homens e que a mesma não é idêntica ao mundo, podendo mudar de acordo com o uso. Esta noção vai ser uma nova visão de filosofia, a chamada “Filosofia Analítica”.

Nas Investigações, Wittgenstein usa o exemplo recorrente do jogo de xadrez, quando se mostra a alguém uma peça do jogo de certo que esta vai ignorar sua função e importância, tal como a peça do rei, a não ser que esta pessoa esteja de acordo com as regras do jogo.[4] 

Como no elucida João da Penha: “Estruturas lingüísticas, os jogos de linguagem fornecem uma visão de conjunto do funcionamento das palavras. E estas se renovam por meio de novos jogos de linguagem, pois umas nascem e substituem as que envelheceram e, por isso mesmo, caíram no esquecimento. Daí a linguagem pertencer à história natural do homem; ela nasce desenvolve-se e modifica-se, e é tão natural quanto andar, correr, beber e brincar. Assim se explica a nova preocupação de Wittgenstein em deslocar para o centro de sua reflexão filosófica a analise de uma linguagem natural (...) A atribuição do nome às coisas, para Wittgenstein, é um jogo de linguagem”[5]

Esta noção de visão panorâmica, de conjunto do funcionamento das palavras, será muito importante para a nossa tarefa de entender a filosofia do autor das Investigações como uma terapia. Mas a principio o que nos interessa nesta introdução perceber como o foco da linguagem se modificou; antes o nome era idêntico ao mundo, agora ele é um jogo de convenções e usos. Isto vai levar Wittgenstein a pensar a filosofia como uma terapia gramatical, ou seja, já que a linguagem é um construto, deve o filosofo observa-la de tal maneira a encontrar os nós e ai desvencilhando-os propor um fim dos problemas filosóficos. A questão da filosofia foi sempre perpetuar estes nós, problemas de grande profundidade[6], o que na verdade não leva a nada, pois, se não há solução para o problema ele deveria ter sido abandonado.

É a partir desta noção de jogo que Wittgenstein vai chegar a necessidade da filosofia “limpar o meio de campo”, de abrir as possibilidades do discurso fazendo um terapia da linguagem e neste sentido iremos analisar os parágrafos 109 à 135 das Investigações Filosóficas, na busca de entender como se dá esta terapia, para tanto iremos nos apoiar no conceito de terapeuta encontrado na antiguidade, pois o termo hoje já perdeu muito do seu sentido original, entendendo estes homens que buscavam a clareza como forma de bem viver é que vamos nos aproximar da filosofia do autor das Investigações.

Fílon o terapeuta.

Fílon era um filosofo judeu que viveu entre 20 a.c e 40 depois de cristo, vivendo este período, porem, sem citar o mártir cristão. De certo pela sua conduta judaica. Isto de certo não nos interessa neste trabalho, o que vai nos ser útil em Fílon é o fato de ele ter escrito uma obra sobre a prática dos chamados “Terapeutas de Alexandria”, homens dedicados à leitura das escrituras, dos grandes pensadores da época, além de grandes oradores e curandeiros. Como nos mostra o comentador de Fílon, Jean-Yves Leloup:

“Fílon de Alexandria pode igualmente interessar-nos pela sua maneira de ler as Escrituras e interpretá-las; então a terapia é sem duvida ‘arte de interpretação’, efeitos e afetos modificam-se em direção a um melhor ou pior de acordo com o sentido que se dá a um sofrimento, um evento, um sonho ou um texto (...) Os acontecimentos são o que são, o que se faz deles depende do sentido que lhes dá.”[7]   

Vemos como a orientação para a noção de terapia para os antigos tinha muita relação com a linguagem. O desvencilhar de um problema era na verdade a tentativa de clarificá-lo, de interpretá-lo de forma coerente, de acordo com um sujeito específico.

 

Linguagem e Terapia

Vimos que a terapia trabalha pelo sentido, como no caso dos jogos de linguagem, cada interpretação depende de um contexto. Wittgenstein vai mais além, no parágrafo 109 ele comenta, “toda elucidação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição.”[8], esta declaração que parece áspera a primeira leitura é na verdade um tentativa de clarificação dos problemas da filosofia, do jogo, de suas regras.

Leloup comenta que “Fílon e os terapeutas são antes de tudo hermeneutas; aprender a interpretar as Escrituras é o treinamento, o exercício necessário que os ensinará a interpretar a vida, a jogá-la da melhor maneira possível, isto é, em união com o Logos que a inspira”.

O que nos parece com este comentário de Leloup são duas coisas, uma que aproxima a filosofia do segundo Wittgenstein e outra que se afasta. Em primeiro lugar fica claro o afastamento, e isto se assemelha ao que pensaria o autor do Tractatus, da idéia entre jogo e Logos. O que fica claro é que os terapeutas estavam seguindo uma ordem, apesar de incerta, do Logos, buscando a regra que gere o “jogo da vida”, de acordo com a probabilidade de um destino declarado e possível de ser adequado ao Logos. Esta posição vai contra a idéia de jogo de linguagem e de homem histórico e natural presente na modernidade e na obra do segundo Wittgenstein. Mas há uma interessante analogia entre se adequar ao jogo da vida e os jogos de linguagem, o terapeuta da linguagem deve jogar da melhor maneira possível às regras presentes na linguagem, no caso, o que inspira o movimento da vida é a linguagem, e cabe clarifica - lá.    

A linguagem quando mal interpretada causa o mal estar que tanto nos aflige. Como no caso de uma má interpretação do Logos levar a um acontecimento inesperado. Estas ilusões gramaticais, são geradas por esta má compreensão; comenta Wittgenstein: “Os problemas são resolvidos não pelo acúmulo de novas experiências, mas pela combinação da que é já há muito tempo conhecido. A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da linguagem.”[9]      

Antonio Zilhão, comentador de Wittgenstein chega às mesmas conclusões e completa:

“A aspiração do filósofo é assim uma aspiração a atingir clareza e não a adquirir mais conhecimento”[10]. O que o autor tenta nos dizer é que a tradição filosófica sempre tentou resolver os problemas expostos colocando novos problemas, criando novas soluções, mas nunca buscando sua visão a partir da clarificação da linguagem.

O que atrapalha a visão dos filósofos é o que Wittgenstein coloca como imagens, grandes paradigmas que direcionam o filósofo. Estas metáforas estão presentes na linguagem e criam a aparência de que estamos resolvendo um problema. “Os problemas que nascem de uma má interpretação de nossas formas lingüísticas têm o caráter da profundidade. São inquietações profundas; estão enraizadas tão profundamente em nós quanto as formas de nossa linguagem, e sua importância é tão grande como a de nossa linguagem. – Perguntemo-nos: por que sentimos uma brincadeira gramatical como profunda?[11]. O próprio autor responde nos dizendo que é a própria profundidade filosófica. E esclarece Zilhão “A clareza que se pretende atingir com a actividade de esclarecimento conceptual é uma clareza total, o que é o mesmo que dizer que o estádio final no tratamento de um problema filosófico deverá ser sua desaparição”[12]   

Esta imagem é que nos mantêm aprisionados, e não nos permite ver as coisas claramente. Leloup, voltando aos terapeutas comenta, “como o resto dos humanos procuram a felicidade, sabem que nenhuma felicidade duradoura pode ter por fundamento a ilusão. A verdade é a própria condição da verdadeira alegria e, por isso, é necessário antes de tudo ‘procurar ver com clareza’. Isso supõe sair das ‘projeções’, que não nos deixam ver o que é.”[13]

A lição terapêutica para Wittgenstein é quando na filosofia empregamos os grandes termos da consagrada filosofia geral, não nos perguntamos como é que estes termos estão sendo usados na linguagem corrente, no cotidiano das pessoas. Estamos apegados as grandes imagens da filosofia. Este ataque direto a filosofia metafísica ou como já citamos filosofia geral é claramente uma revolução. Ao abandonar estas grandes formas de pensamento Wittgenstein pretende purificar a linguagem permitindo que ela flua e que chegue a um patamar onde podemos observar o jogo ocorrendo.

O que Wittgenstein coloca é que na verdade estes grandes sistemas, que estamos, a partir desta filosofia nos libertando, “são apenas castelos de areia que destruímos, e liberamos o fundamento da linguagem sobre o qual repousam”[14] .

Como o autor das Investigações deixa claro, são apenas absurdos que deixamos de lado, é uma terapia, uma purificação, um remédio para a tamanha perplexidade que está presente no homem moderno. O fato de não termos uma visão clara de nossas palavras é o fato de não nos ocuparmos com um olhar panorâmico da linguagem. No qual pudéssemos ver todas as palavras, sem hierarquia, de forma horizontal, como num manancial de possibilidades e de conexões a tal ponto, de podermos vê-las dentro do jogo, se formando e reformulando, sem nunca estar apegado a valores que condicionassem estas observações. É ai que o segundo Wittgenstein vai sacudir a filosofia, o problema do não olhar com clareza, da não observação panorâmica, é que afasta a filosofia do entendimento, e neste sentido é preciso efetuar a terapia, para que o moribundo possa novamente respirar.

Para Wittgenstein a filosofia “não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem; em ultimo caso, pode apenas descreve-lo. Pois também não pode fundamentá-lo. A filosofia deixa tudo como está. ”[15]. E continua de forma brilhante, “este aprisionamento em nossas regras é o que queremos compreender, isto é, aquilo de que queremos ter uma visão panorâmica. Isto esclarece nosso conceito de querer dizer. Pois, naqueles casos, as coisas as passam de modo diferente do que havíamos querido dizer e previsto. É exatamente o que dizemos quando, por exemplo, surge a contradição: ‘Não foi o que eu quis dizer’.”[16]

Há ai uma posição de fuga do dogma, de um trazer a filosofia para o cotidiano do jogo lingüístico, com isso dirimindo os conflitos. A saúde esta justamente ai, uma relação de entrada e saída da linguagem, sem se apegar as imagens próprias da ilusão da linguagem. Não se apegar. Esta também é uma das lições dos antigos terapeutas não se apegar aos bens, às ilusões, aos desejos, as formas pré-estabelecidas e mesmo a si mesmo. Afinal a primeira cura deve ser a do terapeuta. Ele não pode curar se esta doente, mas deve ter estado doente um dia, e sua doença o libertou para entender o erro e poder ai sim curar os outros. Alertá-los para as imagens aprisionadoras, para olhar de forma circunspeta para a situação, observar os jogos.

E neste sentido como nos orienta o autor das Investigações, não há uma forma privilegiada de acessar esta transformação radical de visão de mundo. Existem sim vários métodos, cada um a sua forma, a única regra é observar o erros apontados até agora. Por fim é importante lembrarmos que quando identificamos uma imagem do tipo, dogmática tal como isto é assim, não nos esqueçamos que a mesma ainda esta dentro da nossa linguagem e sujeita aos jogos; não podemos nunca acreditar que ela esta tal como uma normativa superior, ou de fora ditando sua obrigatoriedade. O que podemos fazer é buscar um olhar sobre a linguagem de forma clarificadora e parafraseando, como já disse Wittgenstein, devemos ensinar o homem a sair do tubo de ensaio, e esta pode ser a maior cura para o homem hoje.

 

Bibliografia:

Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

Leloup, Jean-Yves. Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

Zilhão, Antonio. LINGUAGEM DA FILOSOFIA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Lisboa: Edições Colibri, 1993.

Penha, João da. Wittgenstein. São Paulo: Ática, 1995.

Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Lógico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.

    

 

[1] Wittgenstein, Ludwig. Tractatus Lógico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008, p. 131.

[2] Idem, p. 143.

[3] Ibidem, p. 245. 

[4] Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 38-39.

[5] Penha, João da. Wittgenstein. São Paulo: Ática, 1995, p. 57.  

[6] Este grifo foi inserido devido ao uso que Wittgenstein faz deste termo o que será tratado mais a frente.

[7] Leloup, Jean-Yves. Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p.15. 

[8] Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 65.

[9] Idem, p. 65

[10] Zilhão, Antonio. LINGUAGEM DA FILOSOFIA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Lisboa: Edições Colibri , 1993, p. 43. 

[11] Ibidem

[12] Zilhão, Antonio. LINGUAGEM DA FILOSOFIA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Lisboa: Edições Colibri , 1993, p. 43. 

[13] Leloup, Jean-Yves. Cuidar do Ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p.111.

[14] Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 66.

[15] Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 67.

[16] Idem.

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